*N° 0041 - ACALANTO PARA RAIMUNDO - SÉRIE: CRÔNICAS DE MAYANDEUA
Ele se deitou…
O peso do corpo afundou lentamente no colchão, enquanto seus pensamentos começaram a flutuar, como folhas levadas por uma brisa suave. Mais uma vez, aquela lembrança antiga, quase esquecida, emergiu em sua mente — o primeiro pensamento infantil que tivera. Era um eco distante de uma época em que tudo parecia simples e inocente. O mundo, então, era menor, mais compreensível. Ele se lembrou das pescarias em Mosqueiro, Salinas e Marajó, onde o mar e os rios eram seu playground, e os peixes, seus companheiros de aventuras. Naquele tempo, a vida lhe parecia ordenada, lógica... mas isso fora há muito tempo, em um passado agora distante e nebuloso.
Ele se deitou…
Fechou os olhos devagar, como se esse gesto pudesse desligá-lo do presente e transportá-lo para outro lugar. No escuro, uma luz tênue começou a brilhar na escuridão de sua mente, iluminando memórias que ele nunca havia entendido completamente. Era como se essas lembranças, vistas agora de um ângulo diferente, revelassem algo novo sobre sua vida — algo que ele não havia percebido antes. Eram histórias sussurradas entre silêncios, causos poucos, mas carregados de significados ocultos, de planos que nunca se realizaram, de sonhos deixados para trás.
Ele se deitou…
Uma inquietação tomou conta de seu corpo, e ele se virou, buscando conforto. Ao fazê-lo, seus olhos se abriram brevemente e se fixaram nas paredes de palha ao redor. A simplicidade do ambiente o acolhia, mas também o lembrava de tudo o que havia vivido ali. As fotos da família penduradas nas paredes o observavam em silêncio, como guardiãs de seu passado. Rostos familiares, cheios de histórias, momentos compartilhados, amor e perda. Ele sentiu um desejo profundo de se desconectar, de deixar para trás o peso dessas memórias, nem que fosse por algumas horas. Tudo o que queria, naquele momento, era dormir e esquecer.
Ele se deitou…
Mas o calor intenso da noite envolvia seu corpo como um manto pesado, sem permitir alívio. O suor escorria por sua pele, e ele se virou novamente, tentando escapar da sensação sufocante. Em meio à frustração, pensou consigo mesmo: Este verão, aqui no Nordeste Paraense, estava mais forte do que nunca. As temperaturas insuportáveis, o ar denso e quente. Mayandeua, sua querida ilha, parecia diferente. Não era mais a mesma de antes, a que ele conhecia tão bem. Algo no ar, na terra, na água, parecia mudado, como se a própria natureza estivesse tentando lhe dizer algo. Ao longe, no silêncio da noite, ouviu o som distante de latidos, perdido na vastidão da escuridão.
Ele se deitou…
Soltou um suspiro profundo, exalando todas as preocupações e tensões que o mantinham acordado. Aos poucos, sua respiração foi se acalmando, tornando-se mais tranquila, mais ritmada. Finalmente, ele conseguiu se entregar ao sono. Sentiu seus olhos se fecharem pela última vez, a mente se aquietando, mergulhando em um mundo de sonhos. Deixou a janela aberta, na esperança de que a brisa noturna trouxesse algum alívio, algum conforto.
Enquanto ele adormecia, a noite continuou seu curso silencioso. As estrelas brilhavam lá no alto, e apenas os morcegos que habitavam a ameixeira próxima foram testemunhas daquele momento final. Voavam de galho em galho, em silêncio, quando Raimundo, em sua serenidade recém-conquistada, partiu para sempre. Deixou para trás as memórias, as paredes de palha e a vida que um dia conhecera.
E assim, dizem os mais velhos, ele virou Encantado. Sua alma, leve como o vento que soprava sobre Mayandeua, agora dançava entre as estrelas, eternamente livre.
FIM
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Projeto Musical e Literário Primolius Nº 0041